Universo e Pessoa Concepção negro-africana

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Universo e Pessoa

Concepção negro-africana

onde se discorre sobre a concepção negro-africana de universo, pensamento causal e sincronístico e noção de pessoa

Para o negro-africano o visível constitui manifestação do invisível. Para além das aparências encontra-se a realidade, o sentido, o ser que através das aparências se manifesta. Sob toda manifestação viva reside uma força vital: de Deus a um grão de areia, o universo africano é sem costura (Erny, 1968:19) Universo de correspondências, analogias e interacões, na qual o homem e todos os demais seres constituem uma única rede de forças.

O sagrado permeia de tal modo todos os setores da vida africana, que se torna impossível realizar uma distinção formal entre o sagrado e o secular, entre o espiritual e o material nas atividades do cotidiano. Uma força, poder ou energia permeia tudo. Como diz Tempels (1949), o valor supremo é a vida, a força, viver forte ou força vital. Essa força não é exclusivamente física ou corporal e sim uma força do ser total, sendo que sua expressão inclui os progressos de ordem material e o prestígio social. Felicidade é possuir muita força e infelicidade é estar privado dela. Toda doença, flagelo, fracasso e adversidade são expressões da ausência de força. Prole numerosa é uma das expressões de força. A força é adquirível, transmissível, pode aumentar e diminuir até o esgotamento total.

Situando-se entre as mais belas, completas e sucintas formas de expressar a concepção de homem e de cosmos, o mito cosmogônico da tradição bambara do Komo, uma das grandes escolas de iniciação do Mande, no Mali, narra que Deus, denominado Maa Ngala, tendo sentido falta de um interlocutor, o criou. Vejamos a narração bambara da Gênese Primordial:

Não havia nada, senão um Ser.

Este Ser era um vazio vivo

a incubar potencialmente

todas as existências possíveis.

O Tempo Infinito era a morada desse Ser-Um.

O Ser-Um chamou a si mesmo Maa-Ngala.

Então, ele criou ‘Fan,

um ovo maravilhoso com nove divisões

no qual introduziu

os nove estados fundamentais da existência.

Quando o Ovo Primordial chocou

dele nasceram vinte seres fabulosos

que constituiram a totalidade do universo,

a soma total das formas existentes

de conhecimento possível.

Mas, ai!

Nenhuma dessas vinte primeiras criaturas revelou-se apta a ser o interlocutor que Maa-Ngala havia desejado para si.

Então, tomando uma parcela de cada uma dessas vinte criaturas misturou-as.

E, insuflando na mistura uma centelha de seu hálito ígneo, criou um novo ser – o Homem – a quem deu parte de seu próprio nome: Maa.

Assim, esse novo ser, por seu nome e pela centelha divina nele introduzida, continha algo do próprio Maa-Ngala.

Maa, simbiose de todas as coisas, recebeu algo que cada uma de suas partes não recebera: o sopro divino. Esta origem determina um vínculo profundo do homem com cada ser, cada coisa existente no plano material e ainda, com os seres do plano cósmico. A tudo e a cada coisa o homem se relaciona numa grande rede de participação. (Hampate Bâ, 1982:184)

Erny refere-se ao universo africano como uma imensa teia de aranha: não se pode tocar o menor de seus elementos sem fazer vibrar o conjunto. Tudo está ligado a tudo, solidária cada parte com o todo. Tudo contribui para formar uma unidade. Sob este ponto de vista ganha sentido a preocupação com a ecologia e com o bem-estar de outras pessoas. Se somos interconectados, o sofrimento de qualquer pessoa é sofrimento de todos e seu júbilo, júbilo de todos. A árvore abatida desnecessariamente e outros atos de crueldade contra o mundo mineral, vegetal ou animal constituem agressão contra si mesmo. A esta trama de relações associam-se o fenômeno da sincronicidade e o pensamento de tipo sincronístico, bastante distinto do pensamento causal.

Jung e von Franz[1] discursam a respeito da diferença entre essas formas de pensar, contrapondo ao pensamento causal ou “linear”, o pensamento sincronístico ou “de campo”, campo cujo centro é o tempo. Pensando linearmente, ao observarmos a sequência de eventos A, B, C e D, pensamos de trás para diante, perguntando-nos por quê D aparece em consequência de C, este em consequência de B e este, por sua vez, em consequência de A. Como normalmente pensamos que a causa vem antes do efeito, a idéia de tempo é, aqui, linear, com antes e depois, ocorrendo o efeito sempre depois da causa. O pensamento sincronístico, por sua vez, constitui um pensamento que não organiza linearmente e sim em campos. O centro do campo é o momento preciso em que os eventos A, B, C e D ocorrem.

Ao invés da pergunta  por quê tal coisa ocorre? ou que fator causou tal efeito? pergunta-se  o que é provável que ocorra conjuntamente, de modo significativo, no mesmo momento? O interesse primordial dirige-se, pois, à coincidência significativa. Jung diz: Enquanto a mente ocidental examina cuidadosamente, pesa, seleciona, classifica e isola, a visão chinesa do momento inclui tudo até o menor e mais absurdo detalhe, pois tudo compõe o momento observado… tudo que acontece num determinado momento tem inevitavelmente a qualidade peculiar àquele momento… Essa suposição envolve um certo princípio curioso que denominei sincronicidade, conceito este que formula um ponto de vista diametralmente oposto ao da causalidade. A causalidade enquanto uma verdade meramente estatística não-absoluta é uma espécie de hipótese de trabalho sobre como os acontecimentos surgem uns a partir dos outros, enquanto que, para a sincronicidade, a coincidência dos acontecimentos, no espaço e no tempo, significa algo mais que mero acaso, precisamente uma peculiar interdependência de eventos objetivos entre si, assim como dos estados subjetivos (psíquicos) do observador ou observadores. (1970:16)

Outra característica do pensamento causal é a distinção que estabelece entre eventos psíquicos e físicos (embora haja atualmente uma tendência crescente ao questionamento a respeito das possíveis interações entre essas duas cadeias de causalidades). O pensamento sincronístico, entretanto, não estabelece igual distinção: tanto fatos internos como externos podem ocorrer simultaneamente, formando um complexo de eventos físicos e psíquicos, cujo elemento unificador é um determinado momento crítico. Temos nesse caso, como pressuposto primordial básico o seguinte: tudo é um fluxo de energia que obedece a certos ritmos numéricos básicos e periódicos. Em todas as áreas de eventos, acabaríamos sempre por chegar, ao final, a essa imagem especular, o ritmo básico – uma matriz – do cosmo. (von Franz, 1980:28). É o pensamento sincronístico que confere aos diversos recursos divinatórios[2] seu lugar de destaque: a queda dos búzios, opele ou ikin, conforme veremos no Capítulo 8, define uma configuração específica, sincronicamente relacionada a ocorrências físicas, psíquicas, emocionais e sociais da vida do consulente de modo que o oráculo, olhando esta configuração, enxerga a configuração existencial daquele que o procurou.

Noção de Pessoa na África Negra

Referindo-se à concepção negro-africana de ser humano, Thomas, L.V. (1973) utiliza a expressão pluralismo coerente da noção de pessoa. Nas diversas etnias africanas há um sem-número de exemplos de concepções a respeito da constituição humana como resultante de uma justaposição coerente de partes. A pessoa é tida como resultante da articulação de elementos estritamente individuais herdados e simbólicos. Os elementos herdados a situam na linhagem familiar e clânica enquanto os simbólicos a posicionam no ambiente cósmico, mítico e social.

Os diversos componentes da pessoa estabelecem relações entre si e relações com forças cósmicas e naturais. Além disso, ocorrem relações particularmente fortes entre pessoas, como por exemplo as estabelecidas entre gêmeos ou entre um indivíduo e o sacerdote que o iniciou. Cada pessoa, enquanto organização complexa, tem sua existência transcorrendo no tempo e assim, sua unidade/pluralidade passa por sucessivas etapas de desenvolvimento, estando todas as dimensões do ser sujeitas a transformações. Nesse processo podem ocorrer permutas, substituições parciais e metamorfoses, algumas de caráter definitivo, como as associadas aos processos iniciáticos, outras de caráter provisório, como as sofridas durante certos rituais. Apesar de todas as mutações a pessoa reconhece a si mesma e é reconhecida como um sujeito permanente ou seja, sua identidade pessoal conserva-se a despeito da pluralidade de elementos que a constituem enquanto sujeito (nível sincrônico) e a despeito das muitas metamorfoses e estados experienciados ao longo de sua história pessoal (nível diacrônico).

A existência pessoal transcorre no tempo, dizíamos poucas linhas acima. Lembremos que as representações negro-africanas de tempo, universo e pessoa, distintas das que nos são familiares, determinam distintas concepções de desenvolvimento humano. Entre suas principais características poderíamos mencionar a da não linearidade: a vida humana não transcorre num continuum linear – passado, presente, futuro – com data de início no dia do nascimento e data de término no dia da morte. A vida é uma corrente eterna que flui através dos homens em gerações sucessivas. (Kabwasa, 1982:14) O ciclo da vida é circular: a criança vai se transformando até chegar a adulto; este se transforma até chegar a velho; este, por sua vez, se transforma, inclusive atravessando o portal da morte, para alcançar a condição de antepassado; o antepassado renascerá como criança…

O estudo da noção de pessoa, pelo menos no que se refere ao campo etnológico, é relativamente recente. Michel-Jones (1974), sem pretender esgotar as possibilidades, enunciou algumas constantes dos vários conceitos de pessoa existentes na África Negra, partindo dos pontos de vista sincrônico e diacrônico. Após examinar cuidadosamente as contribuições de vários autores da primeira metade do século XX, realçou a importância dos trabalhos de Leenhardt e de M. Mauss. Leenhardt, estudioso da vida dos melanésios, tentou apreender o significado dos comportamentos ligados à concepção de pessoa, através das instituições, das relações sociais e, sobretudo, através das formas míticas onde se expressa a unidade homem/mundo: O indivíduo, enquanto tal, é um ser perdido; tem de possuir qualquer elo com o grupo social. (Leenhardt, citado por M- Jones, p. 48) A pessoa, difusa no grupo, define-se apenas pelos papéis que desempenha e seu corpo não se separa do mundo. Como o pessoal é indissociável do grupal, estudar a concepção de pessoa constitui um recurso para compreender as instituições e as representações a elas associadas. M. Mauss enfatiza o fato de que na ordem cultural tudo o que parece natural (inato) é de fato arbitrário, ou seja, toda relação significante/significado é sempre convencional, extrínseca. Em seus trabalhos com os Índios do nordeste americano construiu a noção de personagem, sugerindo que cada indivíduo desempenha um papel tanto na vida familiar como nos dramas sagrados.

Todas as sociedades dispõem de um saber a respeito do humano. Este saber corresponde a uma concepção de pessoa – ser humano autenticado pela sociedade e nela possuindo direitos, deveres e até mesmo privilégios. (M-Jones, 1974:51) Para que se evite armadilhas etnocêntricas no tratamento deste tema, M-Jones lembra que: (1) a noção de pessoa não é extensível sem modificações sociais profundas; (2) do ponto de vista da análise etnológica, esta noção tem valor operatório, é uma construção teórica; (3) do ponto de vista da sociedade estudada, a construção ideo-lógica (no sentido de lógica das representações) da concepção de pessoa é pensada como natural.

A representação de indivíduo, comunidade e universo é necessariamente influenciada pela representação de tempo. Sendo indispensável o conhecimento da forma peculiar pela qual o tempo é vivido pelos negro-africanos nas sociedades tradicionais para uma compreensão adequada de sua representação de indivíduo, grupo, comunidade e universo, dedicamos o capítulo seguinte a esse tema.

[1] Jung, no prefácio à edição inglesa do livro I Ching ou O Livro das Mutações (tradução de Richard Wilhelm), 1970 e von Franz em Adivinhação e Sincronicidade, 1980

[2] Divinatório é o ato ou recurso de adivinhar

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557d81_ccc2879d70ee4a6c985e2308d44fe57aSe você esta aqui é porque Ifá lhe encontrou, agora você deve encontrar Ifá! 

Awo Ifá Bowale

 

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