Tempo: Concepção negro-africana

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Tempo: Concepção negro-africana

onde se apresentam considerações a respeito de horizontes temporais: cadeia geracional e importância do passado; o clássico estudo de Mbiti sobre o tempo e algumas críticas a ele dirigidas por outros autores; noção de tempo mítico e social

Horizontes temporais

Por horizontes temporais entende-se uma escala temporal e, simultaneamente, a orientação de experiência temporal de um indivíduo ou grupo (Pronovost, 1989:33). Nas sociedades modernas, mais orientadas para o futuro, considerado modelo para o presente, não há representação cíclica de tempo e pressupõe-se a possibilidade de controle do tempo a curto, médio e longo prazo. A interferência da variável classe social na orientação para o futuro determina o predomínio de atitudes de conquista e preservação de bens. Nas sociedades tradicionais entretanto, a orientação se dá em direção ao passado.

Bastante ilustrativo deste fato, é o clássico estudo sobre o tempo, que Mbiti (1969) realizou em algumas sociedades africanas. Segundo esse autor, na vida tradicional africana o tempo consiste numa composição de eventos que ocorreram, estão ocorrendo e ocorrerão imediatamente a seguir. Tudo o que certamente ocorrerá ou tudo que compõe a ordem dos fenômenos naturais, como o ritmo da natureza, por exemplo, pertence à categoria de tempo potencial ou inevitável. Decorre disto a concepção de tempo como fenômeno bidimensional, constituido pelo presente, um longo passado e uma virtual ausência de futuro:

Passado_____ Presente ………………………       (Futuro)

A concepção ocidental de tempo, com passado indefinido e futuro infinito, mostra-se totalmente estranha ao pensamento africano:

(Passado)…………………………….Presente _____Futuro

Na concepção africana de tempo, as ocorrências do presente constituem, sem dúvida, base para o futuro mas o evento atual é tido como pertencente ao presente, integrando-se ao passado. O tempo atual é constituído, portanto, de eventos presentes e passados. A esteira do tempo move-se para trás mais do que para a frente. As pessoas atentam mais para o transcorrido do que para o que poderá ocorrer. Ao ser pessoalmente experienciado, o tempo torna-se real, incluindo tal experiência a percepção de ser a sociedade anterior ao indivíduo e de serem muitas as gerações passadas.

__________________________________________  Hoje

Mbiti realizou suas pesquisas na África Oriental e verificou não haver nas culturas por ele estudadas, palavras ou expressões denotativas de um futuro distante. Analisou os recursos gramaticais dos Kikamba e Gikuyu – dois grupos étnicos do Kenia – e constatou serem nove os tempos verbais por eles utilizados, indicadores portanto, de nove períodos, conforme podemos observar na tabela a seguir.

   Tempo verbal           Kikamba            Gikuyu                    Inglês          

  1. Futuro distante Ningauka Ningoka                  I’ll come
  2. Futuro imediato Ninguka Ninguka                  I’ll come
  3. Futuro indefinido Ngooka Ningoka                  I’ll come
  4. Presente Ninukite Nindiroka                I’m coming
  5. Passado imediato Ninauka Nindoka                  I’ve just came
  6. Passado de hoje Ninukie              Ninjukire                 I came
  7. Passado recente Nininaukie Nindirokire             I came
  8. Passado remoto Ninookie Nindokire                I came
  9. P. inespecífico Tene ninookie Nindookire tene      I came

Futuro distante, o período mais distante do hoje, projetado para o futuro, é um período aproximado de dois a seis meses, não excedendo nunca dois anos e é entendido como extensão do presente. Passado imediato é o período que abrange a última hora que antecede o presente. Passado de hoje é considerado o período que vai desde o amanhecer até duas horas atrás. Passado recente é o ontem. Passado remoto é qualquer dia anterior a ontem e passado inespecífico é o tempo não-especificado no passado.

Cabe aqui uma observação curiosa.  A sequência numérica  empregada pelo africano Mbiti, ao apresentar essa lista de tempos verbais, tem início no futuro (n0 1, futuro distante e termina no passado (n0 9, passado inespecífico), rolando a esteira do tempo para trás. Este detalhe estrutural, aparentemente de pequena importância, de fato reforça o conteúdo apresentado pelo autor.

Ao discorrer sobre as peculiaridades da concepção de tempo dos Kikamba e dos Gikuyu, Mbiti diz temer a ocorrência de associações indesejáveis com vocábulos de língua inglesa e por isso recorre a dois vocábulos swahili – sasa e zamani – no esforço de tornar mais compreensível o que pretende expor. Vejamos:

Sasa é o período mais significativo para um indivíduo, o lapso de tempo em que as pessoas permanecem conscientes da própria existência, projetando a si mesmas no curto futuro e, principalmente, no longo passado. Sasa constitui em si, uma dimensão completa de tempo, incluindo futuro breve, presente dinâmico e passado já experienciado. Quanto mais velha a pessoa, mais longo seu sasa. E após a morte, enquanto lembrada pelos familiares, continuará existindo em sasa. As comunidades  também possuem um tempo de existência, seu próprio sasa, logicamente bem mais longo que os individuais. Tanto para os indivíduos como para a comunidade, o momento mais vívido é o presente, o ponto agora (4), na sucessão linear de eventos. Pode-se denominar o período sasa de micro-tempo e o zamani de macro-tempo. O micro-tempo é significativo para os indivíduos e para as comunidades somente no que se refere às experiências vividas durante seu transcurso.

Zamani, por sua vez, não se restringe ao que chamamos “o passado”. Inclui presente e futuro. Em ampla escala, sasa mergulha em zamani. Porém, antes de serem os eventos incorporados em zamani, precisam ocorrer em sasa. Uma vez ocorridos, movem-se para trás, de sasa para zamani. No pensamento tradicional africano não há um conceito de História movendo-se para a frente, em direção a um clímax futuro, bem como não há um movimento em direção ao fim do mundo. As pessoas depositam o olhar em zamani uma vez que, em lugar de  um reino por vir, como na tradição judaico-cristã, há história a preservar.

A História e Pré-História acham-se impregnadas de elementos míticos. Um sem-fim de mitos em todo o continente africano versam sobre temas relativos à criação do universo, origem do homem, da tribo, de sua chegada a determinado local… Zamani não é um tempo morto. Pelo contrário. Repleto de atividades e acontecimentos, o passado e não o futuro, encerra em si a idade de ouro. Incontável é o número de mitos sobre zamani, o oceano no qual tudo mergulha. Por outro lado, não há mitos sobre o fim do mundo porque não se admite que o tempo possa ter fim.

Sasa e zamani possuem qualidade e quantidade. As pessoas referem-se a eles como grande, pequeno, comprido, curto e assim por diante, em relação a um particular evento ou fenômeno. Sasa geralmente vincula os indivíduos a tudo o que lhes está próximo. É o tempo da vida consciente. Por outro lado, zamani é o tempo do mito, que propicia firmeza e confere “segurança”. Todas as coisas criadas, vinculadas umas às outras, encontram-se envolvidas pelo macro-tempo.

A vida humana possui um ritmo natural, indestrutível, que a nível individual inclui nascimento, puberdade, casamento, procriação, velhice, morte, ingresso na comunidade de falecidos, ingresso na comunidade de espíritos e novo nascimento. Tais momentos críticos de passagem constituem marcos de desenvolvimento. No dizer de Mbiti, constituem chaves, merecem atenção especial e são geralmente marcados por ritos e cerimônias religiosas.

Ao envelhecer a pessoa move-se gradualmente de sasa para zamani. Após a morte física continua existindo em sasa. Parentes e amigos a rememoram, referindo-se a sua personalidade e caráter, mencionando palavras ou incidentes que a lembrem. Aparecem geralmente para as pessoas mais velhas do grupo familiar, as possuidoras do maior sasa do grupo. São reconhecidas por nome e isto é muito importante.

Vivem pois, na memória dos descendentes durante quatro ou cinco gerações, ou seja, enquanto pelo menos um dos descendentes que a conheceu estiver vivo, tornando-se completamente mortas com o falecimento deste. Ultrapassa, então, os limites de sasa para mergulhar inteiramente em zamani. Enquanto uma pessoa permanece lembrada por seu nome, vive na condição de morto-vivente: morta fisicamente/viva na memória dos que a conheceram e no mundo espiritual. Enquanto lembrada, permanece num estado de imortalidade pessoal. Quando ninguém mais, na sucessão de gerações, dela se lembre, completa-se o processo de morte individual e dá-se o ingresso no estado de imortalidade coletiva.

Através das genealogias, indivíduos do período sasa acham-se firmemente vinculados a outros do período zamani, tornando-se contemporâneos. Assim, cada homem vive no contexto de próprio sasa, rumo ao zamani coletivo.

Lembremos que as atividades religiosas africanas incluem a realização de cultos aos já-idos. A oferenda de bebidas e alimentos aos mortos-viventes constituem símbolos de lembrança, comunhão e cordialidade. Considera-se que os mortos-viventes ressentem-se muito do esquecimento dos parentes que, por sua vez, procuram zelar deles com carinho, por amor e para que não lhes advenham doenças e infortúnios, conseqüências inevitáveis do esquecimento.

Alguns autores africanos tecem críticas a Mbiti. Entre eles, a iorubá Oduyoye (1971) que, realizando estudos de Filologia Comparada, procurou verificar as possíveis rotas de origem de vocábulos e termos referentes ao tempo. Procurou no árabe, no hebraico e em idiomas do Médio Egito a origem de palavras iorubás, buscando comparar formas verbais de distintos idiomas africanos. Segundo essa autora, os iorubás dizem ni sisi yi para designar agora, neste exato instante, sendo que sisi corresponde ao sasa dos swahili, tendo ambos, origem hamito-semítica. Considera Mbiti equivocado em suas considerações a respeito do significado de sasa.

Kagame (1975:49), por sua vez, no texto Apercepção empírica do tempo e concepção da história no pensamento bantu, assinala que Mbiti explicitou fartamente, porém de modo equivocado, ao que parece, pois não exprime de maneira firme e exclusiva a idéia de ‘passado’. Fundamenta sua crítica citando Ch. Sacleux, respeitável organizador de um dicionário swahili-francês, que assim apresenta o verbete zamani: tempo, época, momento; usado no plural (zamani za) como no singular (zamani ya), no tempo de, do tempo de, na época de, nos séculos de, na idade de (falando-se de um período de tempo). Zamani za kale, nos tempos passados, antigamente, na antigüidade, outrora, há muito tempo. Zamani za sasa, nos tempos atuais.

Embora sujeito a críticas o trabalho de Mbiti aborda o importante tema das relações entre tempo cíclico e tempo intemporal. Tempo intemporal ou eternidade (a eternidade imutável) e tempos cíclicos, apoiados no anterior. Vivemos normalmente com a consciência no tempo cíclico e intuímos a existência de um tempo eterno – une durée creatice, no dizer de Bergson, uma duração subjacente que, por vezes, interfere no tempo cíclico.

Hama e Ki-Zerbo (1982:62) reforçam muitos dos dados apresentados acima e acrescentam outros: O tempo africano tradicional engloba e integra a eternidade em todos os sentidos. As gerações passadas não estão perdidas para o tempo presente. À sua maneira, permanecem sempre contemporâneas e tão influentes, se não mais, quanto o eram durante a época em que viviam. O sangue dos sacrifícios de hoje reconforta os ancestrais de ontem. Tudo é onipresente nesse tempo intemporal do pensamento animista, no qual a parte representa e pode significar o todo; como os cabelos e unhas que se impede de caírem nas mãos dos inimigos por medo de que estes tenham poder sobre a pessoa.

Como sabemos, a tradição oral constitui uma das três fontes principais de conhecimento histórico na África (dados arqueológicos e documentos escritos são outras).

Obenga (1982) tece considerações a respeito do modo pelo qual a tradição oral apresenta o tempo e os acontecimentos nele transcorridos: para povos iletrados, tudo o que se sabe deriva dos conhecimentos transmitidos de geração a geração pelos tradicionalistas, memória viva da África. São, geralmente, mestres iniciados (e iniciadores) de um ramo tradicional específico. Sobre isso nos esclarece Hampate Bâ (1982): Guardião dos segredos da Gênese Cósmica e das ciências da vida, o tradicionalista, geralmente dotado de uma memória prodigiosa, normalmente também é o arquivista de fatos passados transmitidos pela tradição, ou de fatos contemporâneos. Johnson, em seu clássico The History of the Yorubas, afirma que nesse grupo étnico os historiadores nacionais eram certas famílias de ofício hereditário, mantidas junto ao rei de Oyo.

Referindo-se aos griots[1] assinala Obenga que eles dificilmente trabalham com uma trama cronológica, interessando-se mais pelo homem apreendido em sua existência, condutor de valores e agindo na natureza de modo intemporal. Não se dispõem a fazer a síntese dos diversos momentos da história relatada e sim conceder a cada momento um sentido próprio sem relações precisas com outros momentos. O griot praticamente deixa de lado os afloramentos e emergências temporais denominados em outros lugares “ciclo” (idéia de círculo), “período” (idéia de lapso de tempo), época” (idéia de momento marcado por algum acontecimento importante), “idade” (idéia de duração, de passagem do tempo), “série” (idéia de sequência, sucessão), “momento” (idéia de instante, circunstância, tempo presente) etc. É claro que ele não ignora nem o tempo cósmico (estações, anos), nem o passado humano, já que o que ele relata é, de fato, passado.

Tempo Mítico

Mircea Eliade (1972:38) assim define mito: o mito conta uma história sagrada; relata um acontecimento ocorrido no Tempo Primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’. Em outros termos, o mito narra como uma realidade passou a existir graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais. Seja uma realidade total ou Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma ‘criação’: relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos ‘primórdios’… Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas irrupções do sagrado no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje.

Segundo essa concepção, o homem atual resulta diretamente daqueles eventos míticos, ou seja, é constituído por aqueles eventos. O mito narra as histórias primordiais, o ocorrido nos tempos míticos. Tais acontecimentos compõem uma História Sagrada, por serem seus atores os Entes Sobrenaturais. O homem das sociedades arcaicas rememora a história mítica de sua tribo e a reatualiza, em grande parte, através dos ritos: conhecendo a origem de um objeto, animal ou planta e repetindo os gestos criadores dos Entes Sobrenaturais, o homem busca reproduzir o poder mágico-religioso sobre o mundo, através do retorno mágico à origem e da reiteração do Ato Criador.

Ao reatualizar os mitos através dos ritos, o homem escapa do tempo profano, cronológico e penetra no tempo sagrado, simultaneamente primordial e recuperável a qualquer momento e para sempre. Viver os mitos não significa realizar uma comemoração de eventos míticos e sim, reiterá-los. Ao invocar a presença dos personagens dos mitos, o indivíduo torna-se seu contemporâneo, ou seja, deixa de existir exclusivamente no tempo cronológico e passa a viver, com eles, no Tempo Primordial, tempo forte, prodigioso, sagrado, em que algo de novo, significativo e forte, ocorreu pela primeira vez. Nesse contexto, alta importância adquire o conhecimento, entre outros, da correta forma de realizar as evocações. Sendo a Tradição Oral o reservatório dessas fórmulas, é a ela que se deve recorrer. A correta realização dos rituais e o uso da palavra certa compõem o quadro de exigências básicas para que se passe do tempo cronológico ao primordial. Num Iba Sango (Saudação a Xangô), apresentado por Salami (1990), encontramos uma fórmula de evocação do Tempo:

Mo juba akoda

Mo juba aseda

Atiyo ojo

Otiwo oorun

Okanlerugba irunmole

B’ekekolo ba juba ile

Ile a lanu fun

Olojo oni

Iba re o

Eu saúdo os primórdios da Existência

Saúdo o Criador

Saúdo o sol nascente

Saúdo o sol poente

Saúdo as duzentas e uma divindades

Quando a minhoca saúda a terra

a terra se abre para que ela entre

Oh, Senhor do hoje

eu te saúdo!

Tempo Social[2]

Contagem e divisão do tempo

O tempo mítico, vasto oceano sem margens nem marcos, opõe-se ao tempo social, avenida da história, imenso eixo balizado pelas etapas do progresso. (Obenga, 1982) Como lembra Ki-Zerbo, o nível econômico elementar não cria a necessidade do tempo demarcado, sendo o ritmo dos trabalhos e dos dias um metrônomo suficiente para a atividade humana. Os calendários não são universalistas nem abstratos, porém subordinados aos fenômenos naturais (lunações, sol, seca), aos movimentos dos animais e das pessoas. O tempo é dividido em unidades, baseando-se em atividades humanas ligadas à ecologia ou em atividades sociais periódicas. Constituído de partes heterogêneas e descontínuas, sua medida é qualitativa.

A noite é separada do dia e este é dividido em partes, relacionando-se as atividades à altura do sol. Cada hora é definida por atos concretos. Em Burundi, por exemplo, amakana é a hora da ordenha (sete horas); maturuka é a hora de saída dos rebanhos (8 horas); kuasase, hora em que o sol se alastra (9 horas); kumusase, hora em que o sol se espalha sobre as colinas (10 horas)… Os cumprimentos, nos vários momentos do dia, baseiam-se, principalmente, na luminosidade do dia e na posição das sombras. Estas possuem estabilidade no decorrer dos dias, uma vez que não há grandes variações climáticas. Marcos divisórios da noite são, principalmente, as vozes de animais. O trabalho é uma mistura de atividades, cantos e conversações, constituindo, por vezes, um ato religioso. É definido a partir de  algumas tarefas a realizar e não a partir de unidades de tempo. O relógio tem lugar como objeto de adorno.

Os meses, as estações e as seqüências anuais são geralmente definidos pelo ambiente e as atividades que dele dependem. A semana é determinada por um ritmo social, como, por exemplo, a periodicidade dos mercados, que acha-se associada, em muitos casos, a uma periodicidade religiosa. A contagem das estações do ano é muitas vezes baseada na observação astronômica, podendo abranger uma série de constelações. Em alguns lugares, como entre os adeptos das religiões tradicionais na savana sudanesa, por exemplo, a contagem em anos é feita pelo número de estações chuvosas. Para indicar que um homem é idoso fala-se do número de estações das chuvas que ele viveu ou, fazendo uso de uma imagem, diz-se que ele bebeu muita água. Em alguns lugares o controle do tempo é realizado através de entalhe em madeiras especiais conservadas como arquivos (grutas da região dos Dogon), ou com o depósito anual de uma pepita de ouro num pote de estanho (capela dos tronos no reino de Bono Mansu), ou ainda, de pedras num jarro (cabana dos reis na região mandinga). Alguns sistemas de cálculo mais aperfeiçoados foram elaborados pelos akan, que dispunham de um sistema de calendário complexo com semana de sete dias, mês de seis semanas e ano de nove meses, periodicamente ajustado ao ciclo solar segundo um método ainda não completamente esclarecido. Os iorubás dizem:

Igba kan nlo, Igba kan nbo

Ojo nbori ojo

Ero iwaju nlo, Ero eyin ntele

Um tempo está partindo, outro está chegando

Um dia vai e outro vem

Os da frente (os velhos) estão indo

os de trás (os jovens) os estão seguindo

(dando-lhes continuidade)

Vi entre os iorubás, o quarto de dormir – espaço profano – coexistir com o lugar dos rituais – espaço sagrado. Nas características do espaço físico muito pouca coisa se altera ao passarmos da condição profana à sagrada ou vice-versa. As alterações de consciência são determinadas, principalmente, pelo movimento no tempo, ocorrendo algo como existir simultaneamente nos dois tempos e nos dois espaços – o do sagrado e o do profano, pois não se perde a consciência de estar aqui e agora com o grupo de pessoas físicas e com um conjunto de objetos, ao mesmo tempo que se está no tempo e espaço primordiais, com as divindades e os ancestrais. Exceção a isso talvez seja o estado de consciência alterado na situação de transe e incorporação dos Entes Sobrenaturais, oportunidade em que a consciência é mais chamada para o tempo e dimensão do sagrado[3].

Nas sociedades africanas gerontocráticas, a noção de anterioridade no tempo é ainda mais carregada de sentido que em outros lugares, pois nela baseiam-se os direitos sociais (uso da palavra em público, acesso a certas iguarias, direitos na sucessão real, etc). O essencial, entretanto, não é a determinação precisa das datas de nascimento das pessoas, mas a ordem em que ocorrem.

Hama e Ki-Zerbo assinalam que entre os africanos a história vivida pelo grupo acumula um poder que é a maior parte do tempo simbolizado e concretizado num objeto transmitido pelo patriarca, chefe do clã ou rei ao seu sucessor. Pode tratar-se, por exemplo, de uma bola de ouro conservada  num tambor de guerra. Um exemplo interessante é o dos Sonianke, descendentes de Sonni Ali, que possuem correntes de ouro, prata, ou cobre, cada elo das quais representa um ancestral, simbolizando o conjunto, a descendência dinástica até Sonni, o Grande. No decorrer das cerimônias  tais correntes são regurgitadas em público. No momento da morte, o patriarca sonianke regurgita a corrente pela última vez, fazendo com que o escolhido para sucessor a engula pela outra extremidade, morrendo em seguida. Esse testamento vivo ilustra com eloquência a força da concepção africana de tempo mítico e social. Seria tal visão do processo histórico estática e estéril, na medida em que coloca a perfeição no arquétipo do passado, na origem dos tempos? Constituiria o ideal para o conjunto das gerações a repetição estereotipada dos gestos do ancestral? Não. Para o africano o tempo é dinâmico e o homem não é prisioneiro de um mecânico retorno cíclico, podendo lutar sempre pelo desenvolvimento de sua energia vital. Há, entre os Songhai, um poema significativo:

Não é da minha boca.

É da boca de A, que o deu a B, que o deu a C,

que o deu a D, que o deu a E,

que o deu a F, que o deu a mim

Que esteja melhor na minha boca do que na dos ancestrais.

A vontade constante de invocar o passado que não significa, no entanto, imobilismo e não contradiz a lei geral da acumulação das forças e do progresso. Daí a frase: Que esteja melhor na minha boca do que na dos ancestrais. A viva consciência do passado, sua importância sobre o presente, não anulam o dinamismo deste, como testemunham numerosos provérbios. Hubert & Mauss (citados por Pronovost) observam, acuradamente, que a função essencial de articular o presente ao passado perpétuo e mítico é desempenhada pelos rituais.

Que a força do passado esteja em mim, no presente, para que eu possa assumir compromisso integral com o grupo a que pertenço, participando lado a lado com meus antepassados e contemporâneos, da construção de tempos melhores para os que vêm chegando.

 

[1] Griots são tradicionalistas, cronistas, genealogistas e arautos incumbidos de transmitir oralmente a tradição histórica

[2] Tempo Social é denominação dada por Durkheim. Evans-Pritchard o denomina Tempo Estrutural; Pronovost, Tempo Cultural e Sorokin, Tempo Sociocultural

[3] A respeito do transe veja Verger, 1957

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557d81_ccc2879d70ee4a6c985e2308d44fe57aSe você esta aqui é porque Ifá lhe encontrou, agora você deve encontrar Ifá! 

Awo Ifá Bowale

 

 

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